CONFIGURAÇÕES DE UMA ESFERA PÚBLICA SINGULAR: A EXPERIÊNCIA DOS BANCOS COMUNITÁRIOS NA FORMAÇÃO DO CAMPO DAS FINANÇAS SOLIDÁRIAS NO BRASIL

Victoria Régia Arrais de Paiva

Resumo


Introdução

O processo de expansão dos Bancos Comunitários fomentada pelo Governo Federal brasileiro desde 2003 motiva a presente reflexão, fruto de minha pesquisa de doutorado, que visou compreender a singularidade, a dinâmica e o alcance destas práticas num contexto de mundialização financeira, notadamente marcado por estratégias de combate à pobreza baseadas na inclusão produtiva através do microcrédito. Fundamentadas numa metodologia difundida pelo Instituto Palmas, tais iniciativas são geridas por entidades vinculadas a diversos atores sociais (jovens, mulheres e agricultores familiares) configurando um campo de relações sociais e de sentido denominado de finanças solidárias.

Com o intuito de analisar o contexto e as condições que possibilitaram o surgimento das finanças solidárias no Brasil nos anos 1990, período marcado pela incorporação do Brasil à globalização e ao projeto neoliberal, dando relevo ao surgimento e posterior institucionalização das experiências, com ênfase no Banco Palmas e bancos comunitários a ele vinculados, principalmente após a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no primeiro mandato do Presidente Lula, em junho de 2003.

Referencial teórico-metodológico:

Por institucionalização, entendo o reconhecimento público, a normatização e a expansão das iniciativas criadas pela sociedade até então marginais ao Estado, ou seja, livres do poder exercido pela esfera da “regulação”, no dizer de Sousa Santos (2002). A noção de institucionalização das práticas de economia solidária vem sendo discutida por vários autores, dentre eles Alcântara (2005), Schiochet (2009), Cunha (2012), indicando que o termo está associado a “processos de regulamentação e rotinização como ação do Estado” (ALCÂNTARA, 2005), envolvendo, principalmente, os poderes Executivo e Legislativo, por meio de leis, decretos, editais de apoio e fomento, entre outros. Não se trata, portanto, de abordar o processo de formalização dos movimentos sociais interpretado por vários autores como um meio de cooptação desses movimentos ou aparelhamento do Estado, principalmente quando lideranças atuantes nesses espaços passam a assumir cargos nas esferas de governo. Optei por trilhar o caminho pavimentado por Sousa Santos (2002), Dagnino (2002), Avritzer e Costa (2004), que analisam o referido processo com base na teoria dos novos movimentos sociais e na criação de espaços públicos em que ocorrem interações entre Estado e sociedade civil, segundo formulação de Habermas (2003). Ou seja, tomo como referência teórica o deslocamento conceitual de um determinado modelo de movimento social tradicionalmente organizado “contra o Estado” para um modelo assentado numa maior permeabilidade, à medida que foram criadas algumas vias para a participação da sociedade civil mediante luta permanente pela democratização do Estado brasileiro. Desenvolvem estudos nessa perspectiva Abers, Serafim e Tatagiba e (2014), entre outros. Nesse sentido, é importante notar que o reconhecimento das finanças solidárias ocorre por intermédio do suporte legal, materializado pelos programas e projetos concebidos pela Senaes/MTE e outros órgãos públicos regionais, estaduais e municipais, bem como pelos editais de chamadas públicas nos quais constam os sujeitos da política, seus propósitos, sua metodologia de intervenção e o aporte de recursos necessários à sua sustentação. Outros indícios do respaldo das experiências em finanças solidárias podem ser observados mediante significativo número de eventos específicos realizados sobre a temática, criando espaços de debate com relevância na construção política e também no arcabouço conceitual sistematizado por intelectuais de diversas áreas, fato que gerou maior publicização do tema junto aos diferentes segmentos sociais.

Conforme assinala França Filho (2002), os bancos comunitários são uma expressão das práticas em finanças solidárias e se constituem num fenômeno recente no Brasil. O estado do Ceará tem assumido uma posição de destaque devido à projeção assumida pelo Banco Palmas, por esta ser considerada a primeira e mais bem sucedida iniciativa criada no Brasil. Contudo, para além do pioneirismo, importa notar que esse modelo vem sendo replicado no Brasil e no mundo, tendo recebido incentivos de ordem objetiva e também simbólica, como prêmios de diferentes organizações públicas e privadas, a exemplo da Fundação Banco do Brasil (FBB), da Financiadora de Projetos (FINEP) etc.

      Os achados empíricos analisados à luz das atualizações do conceito de esfera pública em Habermas pelos autores anteriormente citados indicam que os bancos comunitários estimulam a criação de uma esfera pública singular, caracterizada pela criação de laços de reciprocidade entre o Estado, o mercado e organizações da sociedade civil, reposicionando tensões entre os aspectos econômicos, políticos e culturais, afirmando os princípios da economia solidária.

 

Palavras-chave: Economia Solidária – Bancos Comunitários – Finanças Solidárias – Microcrédito – Esfera Pública.

 

Referências Bibliográficas

ABERS, Rebecca; SERAFIM, Lizandra e TATAGIBA, Luciana. Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol.57, nº 2, 2014, pp.325 a 357. ISSN 0011-5258. [online]. Disponível pelo: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52582014000200003&script=sci_arttext> Acesso em 20 de janeiro de 2015.

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CUNHA, Gabriela Cavalcanti. Outras políticas para outras economias: contextos e redes na construção de ações do governo federal voltadas a economia solidaria (2003-2010). 2012. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de Brasília, 2012.

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FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho. Considerações sobre um marco teórico-analítico para a experiência dos Bancos Comunitários. II Encontro Nacional dos Bancos Comunitários. Caucaia, 2005.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

SCHIOCHET, Valmor. Institucionalização das políticas públicas de economia solidária: breve trajetória e desafios. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: MTE/Ipea, n. 40, 2009.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. Reinventar a democracia. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 2002.


Apresentação
Última alteração
16/09/2015