Disputas Simbólicas e Movimentos Sociais Contemporâneos: o caso da Marcha da Maconha

Wanderson Felício de Souza, Caio Becsi Valiengo, Irina Frare Cezar

Resumo


Os movimentos sociais antiproibicionistas constituem uma reação à gestão judiciária e política do Estado em sua relação com substâncias psicoativas, assim como aos padrões normativos e culturais da sociedade que legitimam preconceitos contra os usuários dessas substâncias e a violência sócio-institucional direcionada às sua produção, consumo e distribuição. A Marcha da Maconha, cuja principal demanda é a legalização da cannabis, representa uma miríade de pautas, atores e visões de mundo que interagem em seu desenvolvimento e consolidação como um movimento social contemporâneo, constituindo um dos nexos mais importantes na relação entre o Estado brasileiro e a sociedade civil no campo das políticas de drogas.

A literatura dos movimentos sociais, especialmente a partir da década de 70, passou a desenvolver abordagens teóricas e a construir conceitos que pudessem explicar os principais mecanismos da ação coletiva, integrando as motivações individuais e as oportunidades e constrangimentos estruturais que orientavam sua emergência. Como reação às teorias macroestruturais, especialmente a marxista e a parsoniana, nas quais o compartilhamento de condições ou categorias determinavam o comportamento dos atores, e às explicações psicológicas, excessivamente ancoradas na agência, diversos autores passaram a se debruçar sobre o entendimento de “mediações entre comportamentos individuais e o fenômeno coletivo ‘movimento’” (Alonso, 2009, p. 65).

Nesse sentido, pretende-se, nesse trabalho, analisar o movimento social “Marcha da Maconha” a partir de alguns conceitos oferecidos pelas teorias dos movimentos sociais, todos com importante impacto no debate agência-estrutura, e alguns deles como uma alternativa de análise de nível mesossociológico. O trabalho está dividido em cinco partes. Na primeira parte, introduzimos o trabalho e apresentamos uma breve nota metodológica. Na segunda parte, apresentamos o movimento social, suas principais características e seu lugar na luta antiproibicionista, buscando entender seu processo de construção social. Nas seções posteriores, é desenvolvido o estudo de caso empírico a partir de reflexões teóricas: na terceira parte, analisa-se a emergência das disputas simbólicas pela ação coletiva através dos conceitos de  interpretative frames, identidade coletiva e o papel das emoções e narrativas; na quarta, o enfoque é na participação de indivíduos em movimentos sociais devido à mobilização estimulada por redes sociais. Finalmente, na quinta e última seção, fazemos uma balanço das principais reflexões resultantes da pesquisa realizada.

Metodologia

Escolha do caso analisado

Apesar de integrar o movimento mais amplo temática e territorialmente do antiproibicionismo, o estudo de caso desenvolvido examina o núcleo organizado específico da Marcha da Maconha da cidade de São Paulo. Tal escolha foi realizada devido à importância relativa do caso paulistano, cuja organização mais consolidada e projeção nacional pode oferecer mais insumos para o estudo, além de razões de natureza operacional.

Coleta de dados

Os dados foram coletados por meio de entrevistas abertas, diálogos informais, participação em debates e reuniões do núcleo paulistano da marcha, além de uma atividade na cidade de Santos que forneceu informações importantes sobre a relação entre os coletivos locais, ou seja, as informações foram reunidas essencialmente por meio da observação participante. Além disso, documentos primários, fontes secundárias e entrevistas gravadas e disponíveis na internet também foram utilizadas para a análise empírica desenvolvida.

Resultados

Através da vertente teórica do estudo de redes pode-se compreender que os coletivos integrantes são diversos, mas se conectam de forma a estabelecer resistência à cultura anti-canábica dominante. As redes integradas oferecem opções de engajamento aos indivíduos, despertos num primeiro momento pelo medo e raiva que se convertem em solidariedade com seus pares.

O estudo de caso sugere que a configuração organizativa da Marcha e sua constituição heterogênea facilita a projeção de suas demandas à sociedade política, a mobilização e engajamento de seus participantes e, assim, a sua performance na disputa que trava em seu campo de ação, construindo novas capacidades de articulação por meio da inovação cultural e da produção de frames interpretativos que engajam novos atores sociais à sua pauta. Isso possibilita também que os seus participantes interpretem a realidade social em que vivem e se motivem para participar de uma ação coletiva que julgam importante e legítima.

O caráter horizontal do movimento age como catalisador participativo e permite a agregação de distintos temas e atores. O peso explicativo de elementos como filiações múltiplas – associdadas à construção de redes sociais formais e informais – interligadas à identidades múltiplas na construção da identidade coletiva do movimento é evidente. Elas possibilitam uma interação social positiva, que redistribui informação por meio de processos comunicativos, orienta as relações entre os indivíduos e grupos e canaliza emoções, permitindo ainda que os ativistas construam e desconstruam narrativas sobre o cotidiano do movimento, suas vitórias e momentos de decepção.

Embora os objetivos da Marcha sejam a legalização da cannabis e a liberdade de escolha de seus integrantes, além da referência ao combate ao tráfico, parece ser improvável que ocorra modificação da lei vigente neste momento. Entretanto, a título de construção de um movimento, a modificação do discurso e a elevação de status dentro do campo implicam em novas chances políticas de reconhecimento da pauta, ou seja, da legalização da cannabis, num futuro a longo prazo.  Enxergar essas nuances no desenvolvimento da ação coletiva e na consolidação de suas bandeiras e demandas possibilita o entendimento da sua relação com a sociedade e, sem dúvida, permite entender como o processo participativo de seus membros empodera o ativismo e legitima interna e externamente a disputa social travada pelo movimento.


Apresentação
Última alteração
16/09/2015