Ação pública de redução de danos para usuários de drogas no projeto Corra pro Abraço: um caso de gestão social na definição de problemas públicos?

Emanuelle Santos Silva

Resumo


Os processos de definição e construção de problemas públicos são múltiplos, mas se dão quase sempre no contexto de experiências da ação pública entendida como um conjunto de ações coletivas e multiatoriais para a criação de determinada ordem social e política, direção da sociedade e regulação de suas tensões, integração de diferentes grupos sociais e resolução de conflitos em torno de problemas de pública relevância (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012).Por mais que se defenda, muitos problemas públicos não nascem públicos, tampouco nascem como problemas. Eles se transformam em problemas e conquistam o status de público na medida em que uma dada sociedade passa a desnaturalizar os efeitos diretos e indiretos de um qualquer fato social (DEWEY, 1923 apud BOULLOSA, 2013, 2014). Ao conquistar o status de público, estes passam a pertencer a um privilegiado conjunto de problemas capaz de orientar as ações de governo, estruturar discursos, orientar a preferência e interesses dos atores, manter arenas mais ou menos preservadas e constituir-se como repositório de esforços de diferentes naturezas.

O problema público da drogradição[1], por essência, é complexo e mal estruturado, tendo em vista que envolve diferentes atores, múltiplos interesses e conflitos de valor, além de incertezas sobre as alternativas que podem ser adotadas para minimizá-lo. Quando focado nos usuários em situação de risco e vulnerabilidade social, como a população em situação de rua, demandam análises mais detalhadas, sendo necessário criar novos arranjos políticos, sociais, culturais e econômicos, tendo como desdobramento a criação de ações públicas que garantam os direitos civis e sociais dessa população. O projeto social Corra pro Abraço, desenvolvido desde julho de 2013, pela ONG Centro de Referência Integral de Adolescentes – CRIA em parceria com a Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia – Brasil, atual, Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) vem implementando uma metodologia de redução de danos em duas das principais cenas de uso de drogas no Centro Histórico de Salvador-Bahia (Praça Tiradentes e Aquidabã), usando como estratégia a arte-educação e formação política.Os instrumentos de redução de danos são voltados a compreensão e estruturação dos problemas relacionados a drogadição de modo mais abrangente, podendo gerar a construção de possíveis soluções em políticas públicas com características de inovação social. Trata-se, portanto, de uma visão particular do problema que pode ser posteriormente questionada por posicionamentos conflitantes (LORENC VALCARCE, 2005).Este paper tem como objetivo analisar a dinâmica de formação de problemas públicos (construção do sentido, estruturação e possíveis soluções) no âmbito do projeto Corra pro Abraço e se esta ocorre numa lógica voltada para a gestão social. A metodologia utiliza a observação participante tendo como base a sociologia da ação pública (LASCOUMES, LE GALÉS, 2012). Desde março de 2014 a autora do trabalho, faz o monitoramento do projeto pela SJDHDS e realiza observação participante nas atuações em campo.A construção de sentidos sobre o problema começa a ser feita a partir das estatísticas sobre o perfil da população usuária de crack e outras formas similares de cocaína fumada (pasta base, merla e “oxi”) no país. Estima-se que os usuários de crack e/ou similares correspondem a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nas capitais do país (BRASIL, FIOCRUZ, 2013).  Segundo o Relatório da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, o Brasil investe mais recursos na erradicação da produção, repressão aos traficantes e criminalização dos usuários, do que em ações de prevenção, redução de danos, garantia de direitos básicos dos usuários, como o acesso aos serviços de saúde e assistência social. Segundo Fonseca e Bastos (2005, p. 58), a redução de danos corresponde a “um conjunto de estratégias de saúde pública que têm por objetivo reduzir e/ou prevenir as consequências negativas associadas ao uso de drogas”. Neste sentido, trata-se de uma abordagem mais dialógica e participativa que tende a se aproximar da gestão social, no sentido de configurar “um campo de saberes e práticas referentes aos modos de gerir interorganizações, territórios e relações sociais, sendo orientado por uma ideologia social e do interesse público, orquestrando diferentes escalas e tipos de poder” (ARAÚJO, 2014, p. 88).Partindo do pressuposto de que a sociedade ainda não está preparada para lidar com a problemática do consumo de álcool e outras drogas e suas consequências na vida dos indivíduos, sobretudo aqueles que vivem em contexto de rua, a SJDHDS convidou o CRIA –para implantar o Corra pro Abraço, dada sua expertise na área de arte-educação, principal estratégia do projeto.O conceito ampliado de arte-educação e redução de danos no tratamento, na reinserção social ou na articulação política em torno do debate da necessidade de mudanças na legislação sobre drogas ilícitas no Brasil, adotada pelo Corra pro Abraço se caracterizam como conceitos vanguardistas, onde a saúde e a garantia dos direitos humanos dos usuários de drogas aparecem como caminhos mais seguros e sustentáveis para a sociedade, já que as práticas proibicionistas adotadas no Brasil têm contribuído para a violação de direitos humanos.O Projeto Corra pro Abraço adota a redução de danos, tendo como principal objetivo promover o resgate à cidadania da pessoa que faz uso de drogas, visto que, no contexto brasileiro, estas vivem em condições de estigmatização e vulnerabilidade social, o que interfere na sua capacidade de ir em busca de saúde.Cada campo de atuação do Corra pro Abraço demandam estratégias especificas respeitando a vontade e autonomia dos sujeitos. A participação ativa dos usuários e a própria alternativa da redução de danos exige uma postura mais reflexiva na análise do problema público, indicando processos de gestão de políticas públicas mais inovadores, menos prescritivos, mas que consideram principalmente os diferentes atores e  suas representações sociais. Atualmente, o projeto tem atingido em média 34 usuários por dia, 544 por mês, chegando a 3.264 usuários no primeiro semestre de 2015. [1] Drogadição = Adicção à drogas. A etimologia do vocábulo “adicção” remete ao latim. “ Adicto” origina-se no particípio passado do verbo “addico”, que significa “adjudicar “ ou “designar”. Este particípio é “addictum” e quer dizer o “adjudicado” ou “ designado” – o “oferecido” ou “oferendado”.


Apresentação
Última alteração
15/09/2015