Dependência fiscal do novo município: o reverso da descentralização virtuosa1
Resumo
O Brasil ainda vive um vácuo legislativo no que diz respeito à aos processos de criação e emancipação de municípios. Tentativas de regulamentar a Emenda à Constituição nº15, de 1995, frustraram-se ou com o arquivamento ou com vetos presidenciais a Propostas de Lei Complementar. Foi esta última a situação a que se assistiu ao fim de 2014, quando a presidente Dilma Rousseff vetou duas tentativas de regulamentação da matéria que haviam sido aprovadas pelo Congresso. A justificativa para a decisão, em ambos os casos, foi a pulverização ainda maior dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) que seria ocasionada pelas dezenas de novas emancipações, possibilidade que seria aberta no caso de sanção.
O impasse em torno da matéria deve-se à experiência vivenciada pelo país logo após a promulgação da Constituição, em 1988. Estabeleceu-se um gap de oportunidade que incentivou a emancipação de unidades locais. Essa janela, emoldurada pela elevação do município ao status de ente federativo pela Carta Magna, teve dois itens primordiais: a garantia de repasses financeiros livres e proporcionalmente crescentes da União, por meio do FPM, e a autonomia das Assembleias Legislativas em conduzir as demandas de desmembramentos. Via de regra, originaram-se leis regionais permissivas. A tendência só foi estancada pela aprovação da Emenda nº15, que devolveu ao Legislativo Nacional a atribuição de deliberar sobre a matéria.
O resultado desse período de incentivo foi que, da década de 90, foram criados 1.016 municípios, um aumento superior a um quinto nas unidades federativas locais. Aquele fracionamento territorial da federação foi sustentado por um discurso que apontava para as virtudes da descentralização político-administrativa, em contraposição histórica a 21 anos de regime militar centralizador. Mais municípios, como defendiam lideranças políticas locais e representantes nos Parlamentos, representariam maiores desenvolvimento social e eficiência fiscal.
Passados aproximadamente 20 anos, ambos os argumentos são questionáveis: as novas unidades locais fizeram apenas ampliar o quadro de significativa dependência fiscal e reduzir as fatias do bolo tributário nacional que cabe a cada município brasileiro.
No que diz respeito ao desenvolvimento social, a evolução de indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), do Pnud, e autores como Arretche (2012), demonstram uma evolução generalizada do país nos últimos anos, o que seria consequência de um processo de recentralização federativa na União, como formuladora principal de políticas públicas.
Autores de referência em federalismo fiscal, como Musgrave, Oates, Buchanan e Tiebout, todos responsáveis por trabalhos com perspectiva na teoria da escolha pública, argumentaram favoravelmente à descentralização na alocação de recursos e na execução de políticas públicas. O perfeito ajustamento entre oferta de bens e a demanda populacional seria, como meta da descentralização, capaz de formar um ciclo de virtude fiscal: esse matching entre oferta e demanda, num quadro de livre mobilidade das bases tributárias, levaria à maior eficiência fiscal das menores jurisdições, vista a necessidade de competição entre elas em busca dessas bases e do favorecimento de accountability perante o cidadão local sobre a execução fiscal. Dado esse ciclo, o setor público será tanto menor, ceteris paribus, quanto mais o sistema de receitas e despesas for descentralizado.
O objetivo do trabalho de que trata esse resumo, como resultado de pesquisa desenvolvida no mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é demonstrar que: a maior parte dos novos municípios brasileiros, sendo pouco populosos e pobres, não se diferencia dos mais antigos de porte similar; a onda emancipacionista vivida no Brasil pós-1988 aprofundou as distorções do sistema de compensação fiscal baseado em transferências intergovernamentais obrigatórias, livres e que não demandam contrapartida; e o processo favoreceu politicamente líderes distritais, possivelmente mais interessados em seus interesses particulares do que na maior proximidade entre a administração política e a população local.
Por fim, o objetivo geral é contrapor os argumentos liberais simpáticos à descentralização à experiência do quadro recente de desmembramentos no Brasil. Em tese, nossa federação fiscal visa ao equilíbrio vertical e horizontal, sendo os fundos de participação uma ferramenta eminentemente cooperativa. Entretanto, um quadro de incentivos formado posteriormente à Constituição pronunciou o caráter competitivo desse sistema, sendo os novos prefeitos os jogadores interessados em obter seu ingresso na partilha da receita tributária nacional.
Minas Gerais foi o segundo estado brasileiro com mais casos de criação de municípios na década de 90, tendo dado origem a 131. A amostra considera 97 desse montante, que é o grupo de jurisdições emancipadas 1995. Em termos fiscais, essa amostra confirma a alta dependência fiscal por transferências da União. Para dados relativos a 2012 do Tesouro Nacional, em média, essas novas unidades têm 3,6% de suas receitas correntes constituídas por tributação própria. Já os repasses do FPM representaram 47% das receitas correntes, em média, para o mesmo ano.
A explosão de novas jurisdições locais ampliou as distorções do FPM, visto que, recursos que poderiam ser aplicados em políticas públicas em cidades médias, foram destinados a outras pequenas, inclusive para financiar estruturas administrativas e folhas de pagamento. No grupo de 97 municípios emancipados em 1995, o FPM per capita para 2012 era R$ 1.125; já para suas ex-sedes, que são 74 municípios, o FPM per capita era de aproximadamente R$ 424.
Promovendo-se um exercício contrafactual com dados aquele ano, obtém-se dados interessantes. É intuitivo supor que, se as novas unidades não tivessem se desmembrado das originais, o repasse do FPM ao conjunto seria inferior à soma dos dois repasses realizados hoje. Se for verdade, qual seria a magnitude da diferença para o grupo dos 97 emancipados? Por meio de compensações na fórmula de cálculo de repasses de FPM, observou-se que, se as 74 unidades originais tivessem se mantido intactas, considerando a mesma evolução populacional real de todas as unidades tratadas no exercício, o valor recebido por esse grupo via FPM seria aproximadamente 24% do que os dois grupos obtiveram em repasses totais em 2012. Esse dado hipotético confronta o argumento de que a maior descentralização fiscal propicia maior limitação da magnitude fiscal do setor público.