Desafios da articulação de políticas sociais em contextos federativos: reflexões a partir da transferência de renda e da assistência social

Renata Mirandola Bichir

Resumo


Com mais de 10 anos de existência, o Programa Bolsa Família (PBF) tem sido objeto de grande atenção, seja no debate acadêmico – a partir de diferentes olhares disciplinares, da ciência política ao serviço social, passando pela economia, psicologia e mesmo saúde pública e educação –, seja no debate público, em especial em contextos eleitorais. Multiplicam-se análises nas mais diversas perspectivas, variando desde estudos que buscam explicar sua entrada na agenda de políticas sociais nacionais (Almeida, 2005; Coelho, 2012; Leite e Peres, 2012), entender seu desenho institucional (Soares e Sátyro, 2009; Bichir, 2011), seus impactos sobre a redução da pobreza e a desigualdade no Brasil (Medeiros, Brito e Soares, 2007; Neri, 2007; Soares et al., 2006), até estudos na área de ciência política discutindo os retornos eleitorais advindos do programa (Nicolau e Peixoto, 2007; Licio, Rennó e Castro, 2009). Há inclusive livros que sistematizam a trajetória do programa, sob diferentes perspectivas, ao longo dos últimos dez anos (Castro e Modesto, 2010; Campello e Neri, 2013).

Este artigo propõe uma mudança no foco de análise usualmente empregado. Argumenta-se que, para entender as dinâmicas recentes da proteção social não contributiva[1] no Brasil é necessário analisar não somente o PBF, mas os dilemas, tensões e desafios de sua articulação com outras políticas sociais, como educação, saúde, assistência social, previdência, inclusão produtiva, de modo a entender os limites e possibilidade do nosso sistema de proteção social, em particular a proteção social voltada para os mais vulneráveis. O foco desse artigo recai especificamente sobre as articulações e tensões do PBF com a política de assistência social, considerando as regras definidas no plano federal, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), e seus efeitos indutores sobre os processos de implementação dessas ações, especialmente no âmbito municipal.

Tanto no caso da transferência de renda, com arranjo marcadamente mais centralizado, quanto no caso da política de assistência social, que historicamente estruturou-se de modo bastante descentralizado, é cada vez mais significativo o papel decisório e de regulamentação do governo federal. É principalmente a burocracia federal do MDS que define as principais regras para a estruturação das ações de estados e municípios – ainda que, no caso da assistência social, essas regras sejam construídas de modo muito mais negociado e pactuado com estados e municípios e com atores da sociedade civil, em arenas institucionais construídas com este propósito – com destaque para o (Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e a Comissões Intergestores Tripartite (CIT) –, ao passo que a transferência de renda obedece a um processo decisório mais insulado. Analisar a organização federal dessas áreas e seus processos de construção de capacidades – técnico-administrativas e políticas – é importante também para entender o que acontece no plano local: alguns autores têm ressaltado a relevância das regras formais, dos mecanismos de indução e cooperação federativa e das agendas políticas definidas no plano federal para compreender dinâmicas locais de transferência de renda e assistência social, mesmo em um contexto de grande diversidade de capacidades locais para a implementação dessas ações (Palotti e Costa, 2011; Bichir, 2011; Sátyro e Cunha, 2014).

Nesse sentido, este artigo procura desenvolver e aprofundar alguns eixos de discussão apresentados em Bichir (2011 e 2015) a respeito dos instrumentos de políticas públicas e mecanismos de coordenação que têm sido desenvolvidos para a implementação do PBF e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Em Bichir (2011) procurei analisar os mecanismos federais de coordenação vertical do PBF – com destaque para o Cadastro Único de Programas Sociais e o Índice de Gestão Descentralizada (IGD) – e também as condições de implementação do mesmo no plano municipal – considerando os casos de São Paulo e Salvador. Por sua vez, em Bichir (2015) abordei o processo de construção de capacidades estatais para a implementação de políticas federais de desenvolvimento social – particularmente assistência social e transferência –, analisando o caso brasileiro em perspectiva comparada com Argentina e África do Sul. Neste artigo o foco recai sobre o governo federal, com uma perspectiva mais abrangente de entendimento do PBF no âmbito do SUAS. A partir deste foco analítico, é possível identificar processos paralelos e eventualmente entrecruzados de construção de capacidades para operação da transferência condicionada de renda e para a consolidação da política de assistência social. Se esses dois pilares da política de desenvolvimento social brasileira[2] consolidam-se a partir de dinâmicas próprias e são incorporados de maneira também separada à nova institucionalidade criada com o surgimento do MDS em 2004 (Silva, Yasbek e Di Giovanni, 2007), percebe-se no período recente importantes processos de aproximação (tensa, negociada, com avanços e retrocessos) entre essas duas áreas. 

O artigo baseia-se em revisão da bibliografia e de normativos federais pertinentes, e também em entrevistas semiestruturadas realizadas com burocratas de alto escalão.


[1] Outros pilares importantes da proteção social não contributiva, que não serão abordados nesse texto, são o Benefício de Prestação Continuada (BPC), também no âmbito da política de assistência social, e também a aposentadoria rural (que pode ser considerada semi-contributiva), no âmbito da previdência social.

[2] A área de desenvolvimento social a cargo do MDS abrange ainda a política de segurança alimentar e nutricional e as articulações para a inclusão produtiva (urbana e rural) da população mais vulnerável, além de outras iniciativas de políticas criadas após 2011 para a população extremamente pobre, no bojo do Plano Brasil Sem Miséria. Essas demais áreas não serão abordadas neste texto.


Apresentação
Última alteração
27/09/2015