A participação entre ideias e disputas na luta por dentro do Estado: o Ministério das Cidades no governo Lula (2003-2010)
Resumo
O trabalho proposto constitui um desdobramento de tese de doutorado defendida em 2013, com o objetivo de analisar o ativismo institucional que se deu no Ministério das Cidades em seus anos iniciais, durante o governo Lula (2003-2010).
Em 2003, com a criação desse Ministério, atores do campo da reforma urbana passaram a constituir seu quadro técnico, juntamente com outros atores que já faziam parte da burocracia federal. O projeto político democrático-participativo (Dagnino, 2002; 2004) se constituía, a princípio, como norte compartilhado por esse conjunto atores, explicitado por suas práticas discursivas comuns, historicamente construídas; pelas práticas de gestão participativa empreendidas pelo PT em gestões municipais; e pelo repertório de interações construído pelos atores do FNRU no período que precedeu a criação do MCidades.
Analisei o que esses atores fizeram para garantir a legitimidade e a incorporação da participação enquanto prática de gestão estruturante das políticas públicas urbanas, buscando concretizar o ideário da gestão democrática e participativa - central nas práticas discursivas de tais atores. A partir dessa análise, busquei identificar os condicionantes institucionais, ideacionais e relacionais que permeiam a luta por dentro do Estado e moldam as práticas de gestão resultantes destes esforços.
Apesar do aparente compartilhamento do projeto político democrático-participativo entre tais atores, coexistiram visões bastante distintas a respeito dos significados da participação a ser desenvolvida na política urbana, no que se refere ao papel do governo e da sociedade civil, no âmbito dos instrumentos e práticas participativos a serem constituídos e ao grau de compartilhamento de poder entre governo e sociedade. Percebi que, a partir dessas visões, os atores se agruparam dentro a institucionalidade e buscaram apoio de atores com visões semelhantes para concretizar suas ideias em práticas de gestão.
Em diálogo com a perspectiva neoinstitucionalista discursiva (Schmidt, 2008; 2010), argumento que a compreensão das diferentes ideias a respeito da participação presentes entre os atores que participaram ativamente da construção institucional do MCidades no período contribui para explicar e avaliar o alcance dos instrumentos e práticas participativas que se consolidaram na política urbana no período. Na medida em que atores específicos se agruparam com base em suas visões específicas acerca do significado da participação e foram capazes de exercer autoridade prática (Abers & Keck, 2013) sobre outros atores na institucionalidade, suas visões (ou ideias) sobre participação, disputadas com outros atores no processo, deram origem a práticas e instrumentos com dinâmicas e alcances distintos.
Reconheço que, nessa luta por exercer autoridade prática dentro da institucionalidade, os atores foram constrangidos pelo legado de políticas que sedimentou-se historicamente no setor. No entanto, chamo a atenção para o fato de que fatores ideacionais são centrais e devem ser levados em conta nesse tipo de análise. Vale ressaltar que é insuficiente o pressuposto, bastante comum na literatura sobre participação desenvolvida no Brasil, de que o compartilhamento do projeto político democrático-participativo levaria à construção de práticas e instrumentos de participação com maior alcance em termos de compartilhamento de poder entre Estado e sociedade, e democratização da gestão.
A pesquisa revelou que a presença de ativistas ocupando cargos no Ministério foi decisiva para garantir maior capacidade de incorporação de instrumentos participativos ou práticas de gestão participativa com caráter específico, orientado pelas visões compartilhadas pelos atores nesse contexto. A saída desses atores do processo de construção institucional do Ministério é um dos fatores importantes para explicar a predominância, no segundo período estudado (2005-2010), de instrumentos e práticas de gestão participativa mais restritos, obedecendo à visão que chamamos "governista" ou instrumental, onde o horizonte do compartilhamento de poder decisório entre governo e sociedade através da participação está ausente. Em suma, concordando com a perspectiva institucionalista discursiva, o agente da política e as ideias que defende são fundamentais para se compreender as instituições produzidas. O caso reforça a existência de espaço para agência e criatividade no processo de construção institucional, mesmo em contextos onde se dão constrangimentos institucionais e relacionais relevantes, relativos ao caráter da política específica (em especial no que se refere aos atores e interesses envolvidos), à capacidade estatal existente, ao legado institucional do setor ou à baixa capacidade dos atores relevantes em exercer autoridade prática.
A partir destes achados, proponho como desdobramento recente desta pesquisa, uma aproximação entre as literaturas sobre participação, instituições e burocracia, a fim de construir uma base teórico-metodológica voltada à análise dos efeitos e desafios da entrada de ativistas na institucionalidade do Estado para a construção democrática. Acredito que a compreensão do processo de construção institucional e da composição do corpo burocrático (perfil e componente ideacional), são fundamentais para a reflexão sobre o avanço da participação e da democracia em uma dada instituição, para além dos espaços participativos.