Prostituição e esfera pública : perspectivas acadêmicas, governamentais e não-governamentais

Soraya Silveira Simões, Laura Rebecca Murray, Thaddeus Gregory Blanchette, Flavio Cruz Lenz Cesar, Lucas Bernardo Dias

Resumo


Atualmente, no Brasil, os valores domésticos e religiosos vêm pautando a acirrada disputa pelo ajustamento de leis no Congresso Nacional e, em particular, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Isso retrata que uma série de demandas que vão de encontro a esses valores e princípios são dificilmente legitimadas e transformadas em leis e políticas publicas capazes de contemplar e representar as mais variadas agendas da população brasileira. Uma pesquisa realizada em Brasília, em 2012, pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids-ABIA, em parceria com a ONG Davida, junto a 47 gestores, técnicos e parlamentares, apontou que todo o processo de reconhecimento da prostituição como uma ocupação, iniciado em 2002 (com o registro da prostituição na Classificação Brasileira de Ocupações-CBO), resume-se, hoje, em políticas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Todas as demais dimensões do reconhecimento da categoria, fruto de um longo e diligente processo político, estão hoje completamente obscurecidas. O estudo também apontou que politicas relacionadas aos direitos das prostitutas e ao reconhecimento pleno do trabalho sexual (vide CBO) foram soterradas por linhas de ação relacionadas ao 'tráfico de pessoas' e 'exploração sexual de crianças e adolescentes', e tendem, com isso, a criminalizar, vitimizar e produzir - em vez de reduzir – a vulnerabilidade das prostitutas através da violação e do não reconhecimento de suas reivindicações e de seus direitos. Isso ilustra um eloquente quadro de retrocesso das políticas que vieram sendo intensamente debatidas e construídas pelo movimento social, em interlocução com diversos outros agentes governamentais e  não-governamentais, até meados dos anos 2000.

Esta Sessão Livre pretende, portanto, levantar questões que vêm sendo abordadas no âmbito do projeto de extensão Observatório da Prostituição, em especial aquelas concernentes aos processos de afirmação dos sujeitos nas esferas públicas. Em pesquisa que realizamos durante a Copa do Mundo de 2014, acompanhamos o tratamento judicial e midiático da prostituição e observamos uma série de violaçôes de direitos e a promoção da desinformação sobre esses mesmos direitos pela mídia, nacional e estrangeira, por atores estatais e por organizações da sociedade civil, que propagaram um pânico moral observado em outros países que receberam grandes eventos esportivos. O problema da “exploração sexual” foi deliberadamente confundida com prostituição e definida de maneira excessivamente ampla e ambígua, obscurecendo a necessidade de se resguardar os direitos dos trabalhadores sexuais, sobretudo nesse período, ressaltando assim alguns retrocessos da democracia brasileira na atual conjuntura.

Se considerarmos que as lutas de hoje não são somente lutas contra as dominações políticas e contra as explorações econômicas, mas sim lutas contra as sujeições identitárias, como sugeria Michel Foucault em praticamente todos os seus seminários, poderemos dizer que uma reformulação do problema político passa, de maneira incontornável, por uma política do reconhecimento e de ampliação dos direitos reclamados pelos movimentos sociais. Prostitutas ativistas têm surgido e ampliado suas vozes no cenário nacional e internacional levantando uma crítica sobre muitas das políticas ditas « humanitárias » que, no entanto, soterram razões outras do existir que encontram muitos obstáculos para serem legitimadas nas arenas públicas brasileiras. No campo de disputas pela definição e afirmação de verdades sobre o sujeito, amplamente abordado pela obra foucaultiana, descobrimos que a 'verdade', seja ela justificada em qualquer princípio científico, moral e religioso, não é capaz de 'salvar o sujeito'. Pelo contrário, a modernidade das relações entre 'sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito'.

Esse enquadramento da questão sobre a formação identitária e ética do sujeito e sobre a produção de verdades sobre o sujeito é fundamental para o esclarecimento da importância primeira dessa Sessão Livre. Pois ao consideramos que a prostituição constitui um campo historicamente construído como problemático tanto pelo conhecimento científico quanto pelos campos político e religioso, podemos afirmar que a dimensão pragmática da construção do sujeito (ou seja, pela experiência originada em seus próprios engajamentos) é, ela mesma, produtora de um sentido de verdade que pouco ou nada corresponde às definições produzidas em outras instâncias e campos do conhecimento.

Sobre esse sujeito - a prostituta - o Estado, em particular, sempre se voltou na tentativa de contê-lo, reprimi-lo, ocultá-lo, despolitizá-lo. Somente ao final dos anos 1970, quando as ações truculentas da polícia e o arbítrio das campanhas de saúde chegavam ao ápice do desprezo, tanto dos corpos das mulheres prostitutas quanto de sua existência moral, estética e política, surgiu uma nova maneira de apresentação pública da figura da prostituta. Desta vez, politizada, articulada e reclamante de direitos concernentes ao trabalho, à saúde e à cidadania. A pauta de violações dos direitos colocada pelo movimento de prostitutas redefiniu problemas públicos e a construção de uma nova agenda se deu a partir da participação desse novo sujeito, agora tornado visível em outras instâncias da esfera pública. Ao mesmo tempo, a agenda desse movimento tem sido comprometida por retrocessos políticos no campo dos direitos sexuais e agendas neoliberais e biomédicas – potencializadas ainda por um modus operandi de Estado que empenha-se em "fazer de tudo para não fazer nada".  

Para discutirmos alguns dos processos que vêm contribuindo, atualmente, para o fortalecimento da esfera pública brasileira, escolhemos, pois, o movimento de luta pelo reconhecimento pleno da prostituição como trabalho sexual, pauta organizada por prostitutas a partir do final da década de 1970 e hoje apoiada pelos participantes dessa SL : deputado Jean Wyllys, autor do PL Gabriela Leite pela regulamentação da prostituição ; Flavio Lenz Cesar, editor do jornal Beijo da rua e ativista da ONG Davida ; Laura Murray, realizadora do documentário Um Beijo para Gabriela, ativista de Davida e pesquisadora do Observatório da Prostituição ; Betânea dos Santos, prostituta e ativista da Associação Mulheres Guerreiras/Campinas, integrante da Rede Brasileira de Prostitutas ; Elaine Bortolanza, diretora de arte da grife Daspu ; Thaddeus Gregory Blanchette, Professor de Antropologia da UFRJ-Macaé ; e Soraya Silveira Simões, professora do IPPUR-UFRJ e coordenadora do Observatório da Prostituição.


Apresentação
Última alteração
15/09/2015