Por uma sociologia sistêmica da gestão de políticas públicas

Roberto Dutra, Mauro Macedo Campos

Resumo


O artigo é de natureza eminentemente teórica e defende o diálogo entre a sociologia e a análise da gestão de políticas públicas. O argumento central é o de que uma compreensão mais ampla da gestão de políticas públicas exige uma teoria da sociedade capaz de tematizar as relações entre os diferentes subsistemas da sociedade no processo de formulação e implementação de políticas públicas. A teoria da sociedade escolhida é a teoria da diferenciação funcional do sociólogo alemão Niklas Luhmann. A tese principal é a de que os dilemas da gestão pública em face das dificuldades de conduzir o processo de implementação de políticas públicas podem ser melhor compreendidos se se parte de uma teoria da sociedade que postula a multiplicidade das formas de gestão, em correspondência com a multiplicidade das referências valorativas instauradas pela diferenciação da sociedade. Neste quadro, a gestão pública aparece como uma forma – entre outras – de estruturar a ação social em organizações e complexos organizacionais dos quais depende diretamente a cadeia formulação-implementação de políticas públicas. Até o início da década de 1970 do século XX quase não se estudava a implementação de políticas públicas (Birkland, 2001: 177). Isto se devia sobretudo à crença de que esta fase não era problemática, dado que refletia apenas a execução simples, por parte do braço administrativo do Estado e de outros atores envolvidos no processo de implementação, da decisão que havia sido previamente formulada pelos governantes. No entanto, a partir desta mesma década, como resultado de uma multiplicidade de fatores, o Estado moderno vai enfrentar uma crise permanente de governabilidade, deparando-se com enormes dificuldades em gerir políticas públicas e controlar os processos sociais em geral. É exatamente neste contexto que surge aquele que é considerado o trabalho seminal dos estudos da implementação – a obra de Pressman e Wildavsky de 1973, intitulada “Implementation: How Great Expectations in Washington Are Dashed in Oakland”. Este estudo, tal como o título revela, versava sobre as razões para que um projeto de desenvolvimento econômico decidido centralmente tivesse falhado em Oakland, tendo os autores chegado à conclusão de que a falta de coordenação entre as diversas agências envolvidas era o principal motivo do insucesso da política.Mesmo se apegando à crença comum de que a implementação é um processo racionalmente controlável por parte dos formuladores de políticas, e com isso percebendo a análise dos “déficits de implementação” como meio para se buscar este controle, o estudo de Pressman e Wildavsky foi, ao mesmo tempo, o ponto de partida para uma profunda revisão crítica deste modelo dominante sobre a gestão de políticas públicas: o modelo do controle decisório por parte dos formuladores, inspirado sobretudo no paradigma weberiano da dominação racional legal embasada na hierarquia e na impessoalidade da organização burocrática (conhecido como modelo top-down).  O estudo seminal de Pressman e Wildavsky, ao tentar corrigir e aperfeiçoar este modelo, acaba revelando o caráter “irrealista” da pretensão de controle estatal sobre a implementação de políticas públicas. Os diferentes modelos teóricos criados desde então têm em comum o desafio de explicar (e não raro propor estratégias de intervenção) os fracassos e dificuldades dos agentes governamentais e da administração pública em conduzir a fase de implementação (Hudson e Lowe, 2004: 205). E a evolução analítica daí decorrente pode ser entendida como um crescente distanciamento (apesar das tentativas de síntese) em relação ao paradigma top-down, cuja ênfase está justamente na capacidade dos agentes da administração pública em emanarem diretrizes claras e controlarem a ação dos atores e instituições envolvidos na fase de implementação.O modelo top-down, ao postular o controle racional-burocrático na gestão de políticas públicas, comunga de uma concepção da vida social centrada na ideia de que o sistema político-administrativo é capaz de controlar o funcionamento de determinadas esferas sociais a fim de garantir a obtenção de determinados efeitos em termos de implementação de políticas. Trata-se de uma noção de gestão pública que negligencia a autonomia operativa das esferas sociais e, consequentemente, a capacidade destas esferas, assim como das organizações envolvidas com a implementação de políticas, de produzirem injunções e estruturas que disputam a direcionalidade da ação implementadora com as diretrizes estabelecidas pelo sistema político-administrativo. A abordagem sociológica clássica sobre o tema da gestão de organizações, a qual influenciou profundamente o modelo top-down, é o modelo weberiano da administração burocrática. No entanto, o estudo comparativo das organizações (Blau, 1976: 143) tem contribuído para uma revisão importante do modelo weberiano. Uma revisão que não invalida as hipóteses centrais sobre a relação entre as características principais que Weber atribui à organização burocrática, mas que “indicam as condições em que as relações, inicialmente tidas como universais, são contingentes” (Blau, 1976: 143). Uma impessoalidade rigorosa, por exemplo, pode ser eficiente apenas sob determinadas condições e apenas na coordenação de tipos específicos de tarefas (Litwak, 1962). Em outras, laços comunitários podem ser convenientes. A contingência das relações que Weber havia percebido como necessárias foi também o foco das críticas que autores como Parsons (1964: 58-60), Goudner (1954: 22-24) e Stinchcombe (1959: 168-187) fizeram ao postulado segundo o qual especialização profissional e autoridade hierárquica são características associadas e complementares na organização burocrática. Os críticos afirmam que os princípios derivados da especialização profissional entram em conflito com os princípios que informam a administração hierárquica, ou seja, que os dois não são complementares, mas sim mecanismos alternativos e concorrentes de controle e coordenação. Princípios profissionais facilitam a coordenação entre setores de atividades idênticos ou afins, enquanto coordenação de setores muito diferentes exige hierarquia.  Neste contexto, fica claro que a frustração com o modelo top-down é, em grande parte, decorrente de expectativas que ignoram o fato da diferenciação da sociedade e, sua principal consequência para a gestão de políticas públicas: a impossibilidade de um sistema social estabelecer, de forma unívoca e segura, as diretrizes que vão orientar as práticas sociais nos outros sistemas sociais e assim controlar a fase implementação de políticas. 

 


Apresentação
Última alteração
15/09/2015