O papel das organizações da sociedade civil na política pública de assistência social no Brasil: contribuições para a análise da provisão de serviços no Sistema Único da Assistência Social
Resumo
Este trabalho busca compreender a atual dinâmica de papeis e relações entre Estado e organizações da sociedade civil (OSC) na política pública federal de assistência social no Brasil, sobretudo, frente às reconfigurações na política nacional nesta área ocorridas no período recente (2003-2014), o que tem como marco o Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Como será explorado, os direcionamentos adotados parecem complexificar estas relações e a gestão pública no campo da assistência social, e sua análise é relevante do ponto de vista político e acadêmico.
O período dos governos de Lula e o primeiro de Dilma (2003-2014) foi marcado pela estruturação das políticas sociais em âmbito nacional. Na assistência social, verifica-se um processo de responsabilização estatal por esta área, inclusive no que se refere à provisão da política, o que impacta diretamente o papel das OSC neste campo. Nesse sentido, uma referência importante é o SUAS, sistema criado em 2005 pelo Governo Federal que visa organizar a gestão da política de assistência social no Brasil e que concretiza um movimento mais amplo e processual de reconhecimento e construção da assistência social como política pública, que ganha força a partir da Constituição Federal de 1988 e inclui outros marcos igualmente importantes – como a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, ou a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004.
Apesar de as OSC serem reconhecidas como parte da rede socioassistencial nestas normativas, estas são tidas como “prestadoras complementares de serviços socioassistenciais” (BRASIL, 2015), de modo que deixam de ser provedoras quase "exclusivas" destes serviços. Dessa forma, verificam-se mudanças relevantes em relação a um padrão reforçado e enraizado nesta área, uma vez que a assistência social no Brasil foi historicamente caracterizada por um modelo imediatista, circunstancial, clientelista e de atuação descontinuada e fragmentada (BICHIR, 2011), no qual as OSC sempre estiveram envolvidas na provisão de serviços públicos (AMÂNCIO, 2008; JACCOUD, 2012; MESTRINER, 2012). Rompendo com esta lógica, o SUAS é interpretado como um processo de “regulação estatal no campo da proteção social”, no qual se pretende “constituir o campo do dever de Estado” (SPOSATI, 2009, p. 48). Nesse sentido, o Estado, além de coordenar a política, passa a executar diretamente serviços sócio-assistenciais, sobretudo por meio da criação, em todo território nacional, de equipamentos públicos – como os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS). Além disso, este processo implicou também na regulação da atuação dos outros atores (não-estatais) que fazem parte desta política, como as OSC.
É um equívoco generalizar o conceito de OSC, que inclui diferentes tipos de organizações, e a análise sobre suas relações com o Estado varia de acordo com a área de política pública abordada – cada uma com suas peculiaridades e trajetórias específicas. No caso da assistência social, as normativas vigentes distinguem entre entidades “de atendimento”, “de assessoramento” e “de defesa e garantia de direitos” (BRASIL, 2015). Para a discussão aqui pretendida, são focadas as organizações do primeiro tipo, responsáveis pela execução direta de serviços. Com isso, busca-se privilegiar a reflexão sobre o papel das OSC na provisão de serviços da assistência social, considerando-se que a questão de quem executa a política e como se dão as interações neste sentido parece ser central nos distintos direcionamentos que ela assume.
Muitas e complexas são as questões de pesquisa e dilemas que se apresentam neste contexto, sobretudo por abarcarem aspectos relacionais e interpretativos, além de se referirem a processos ainda em curso. Assim, assume-se a intenção de analisar as dinâmicas e espaços de construção institucional em torno de um sistema (o SUAS) ainda em implementação, com foco em seus efeitos nas relações que se estabelecem entre Estado e OSC na área da assistência social.
A análise de políticas públicas a partir da discussão sobre o papel que ocupam as OSC se trata de uma opção extremamente relevante, pouco explorada ou problematizada (COUTO et al., 2011), sobretudo no que se refere a abordagens mais analíticas e explicativas (e menos normativas ou prescritivas) – como a pretendida neste trabalho –, de modo que este é um campo permeado por dilemas e perguntas em aberto. Nesse sentido, não se pretende concluir o quão positivas ou negativas são estas relações – como fazem muitas das interpretações neste campo (sobretudo, ao final da década de 1990 e década de 2000) –, mas sim compreender continuidades e alterações nesses padrões de interação entre Estado e OSC, verificando a importância de legados do campo da assistência (com foco na provisão privada de serviços) e as mudanças que já foram implementadas a partir da maior responsabilização estatal também pela provisão dos serviços.
Partindo desta abordagem, a intenção deste artigo é trazer contribuições a esta reflexão por meio da análise sobre como o papel das OSC se estabelece concertamente no SUAS no contexto atual. Para isso, pretende-se partir da discussão sobre como esta relação é normatizada na política pública de assistência social – isto é, quais são os instrumentos e dispositivos institucionais que regulam o funcionamento das relações das OSC com o Estado (contratualização, repasse de recursos e categorias de vinculação ao sistema). Em seguida, é proposto um panorama que busca caracterizar a realidade das OSC e dos serviços por ela realizados na área da assistência social no Brasil atualmente – no que se refere a seu perfil, áreas de atuação, distribuição territorial, evolução no tempo, características dos repasses de recursos públicos, etc. Esta caracterização utilizará dados secundários de pesquisas já realizadas por instituições reconhecidas nacionalmente, sobretudo das edições de 2006 e 2013 da Pesquisa de Entidades Privadas sem Fins Lucrativos de Assistência Social e do Censo SUAS (pesquisa anual). Estas informações serão analisadas e articuladas a partir de contribuições teóricas que fornecem elementos importantes na problematização e interpretação do cenário delineado.